Nossa estreia no mundo já carrega consigo uma série de regras. Ou você toma banho na sequência em que sai da barriga ou é melhor esperar algumas horas - depende de onde nasce e de qual tipo de médico(a) e informações seus pais tiveram acesso. Seu enxoval é definido de acordo com o seu sexo. Aliás, o sexo define muito a sua Constituição. Sim, porque ela, infelizmente, não é a mesma pra todos nós. Ela, inclusive, se subdivide em editorias: seu sexo, sua raça, seu status social e por aí vai.
Fato é que, quando a gente cresce, vai aprendendo que o ciclo da vida é: nasce, cresce, reproduz e morre. Tão puro e simples quanto isso. É um manual básico, testado e aprovado há milhares de anos.
O problema é que ele desconsidera a nossa capacidade de querer mais, especialmente se você for mulher. E querer mais é coisa de doida.
Em ‘A Serenata’, Adélia Prado diz:
“Estou no começo do meu desespero/
e só vejo dois caminhos:/
ou viro doida ou santa”
Mais pro fim dos versos, ela continua:
“De que modo vou abrir a janela, se não for doida?
Como a fecharei, se não for santa?”
É desesperador mesmo atentar para o fato de que crescemos comportadinhas enquanto, lá dentro, ia crescendo em nós o desejo incontrolável de virar a mesa, de desafiar quem ousou dizer que a nossa Constituição era a de boazinha.
Mas o mais curioso é que, mesmo com a raiva que gera aqui dentro, a gente navega entre a doida e a santa todos os dias. Uma dualidade incansavelmente incansável. Somos quietas, mas inquietas.
Perdoamos porque guardar rancor faz mal, mas nos sentimos violadas todas as vezes que dizemos “sim” ao “me perdoa?”. Traçamos limites e os negociamos (mais de uma vez) internamente em nome do “bem-estar geral”. Buscamos entender o outro lado mesmo quando o outro lado jamais busque entender o nosso. Cedemos quando não queremos ceder. Amamos até quando não queremos amar. Carregamos culpa por nós e pelos outros. Mas brigar, a gente só briga com a gente mesmo.
Esses dias eu fui provocada a colocar no papel tudo o que eu tinha na minha lista de desejos de vida e que consegui realizar. Me surpreendi comigo mesma. Fiquei grata, sobretudo, a mim (oi, Anitta!). E aí, na sequência, fui confrontada com uma pergunta que alugou o famoso triplex na minha cabeça: “o que você quer mais?”.
Eu pensei por alguns dias nessa resposta. E não acho que ela é algo finito aqui. Mas eu quero criar revoluções constituintes sempre que achar necessário. Sim, me revolucionar através do poder de criar ou modificar as normas constitucionais que me foram impostas.
Eu já vivi grandes revoluções. Já me surpreendi comigo mesma algumas vezes. Já bebi da água que um dia disse que jamais beberia. Eu quero uma vida prática, sensata. Mas não quero que ela me roube o direito ao desatino vez ou outra. Eu quero não ter vergonha de um desejo pulsante. Quero, como muito bem disse Martha Medeiros, “seguir desfazendo as virgindades que ainda carrego”. Quero sensações inéditas até meu último dia. Quero que me abram portas, sim. Mas que saibam que eu posso fechá-las se achar que alguém não merece mais abri-las. Quero abrir minhas próprias portas. Quero ser boa, jamais boazinha. Quero me permitir extremos enquanto busco o meu próprio equilíbrio - seja ele qual for.
Quero que eu nunca aceite que ser uma mulher madura exige ser uma mulher conformada. Quero transgredir e quero poder não fazer nada. Quero ser verborrágica e misteriosa. Quero me conectar com outras possibilidades do meu existir. Quero ser veterana em papel de novata. E novata em papel de veterana.
Quero escrever minha própria Constituição com regras feitas a lápis e outras à caneta. Umas que mudam e outras que serão imutáveis, especialmente no que tange o lugar do outro no meu mundo - afinal, tem coisas que precisamos de registro mais duradouro (memória é uma forma de proteção também, mesmo que a gente esqueça vez ou outra).
Quero abrir a janela e poder fechá-la. Doida e Santa, Adélia. Jamais uma ou outra. Porque a gente sempre tá disposta a abrir e, sobretudo, a fechar a janela. E não há mal algum nisso. Nossas revoluções constituintes acontecem exatamente no movimento dessa dualidade. Doida e Santa. Janela aberta, janela fechada. Lápis e caneta. Como no movimento de uma sanfona. Vai e volta pra criar melodia. Agradável a quem sabe apreciar. Terrível para quem não sabe ouvir.
O que eu ando lendo
#01 - A montanha é você
Eu gosto de livros de autoajuda (pode criticar. Não ligo). Por isso, recomendo fortemente ‘A montanha é você’, de Brianna Wiest. O livro fala sobre como transformar a autossabotagem em autocontrole, algo tão importante por aqui e, chuto eu, por aí também.
Brianna é direta, pega no pé e você tem a sensação de que ela escreve diretamente pra você.
“Um dos maiores motivos para as pessoas evitarem fazer um trabalho interno importante é o fato de reconhecerem que, se ficarem curadas, suas vidas vão mudar”.
(doeu aí? porque aqui foi um tabefe)
“Sua vida nova vai custar a sua antiga.
Vai custar sua zona de conforto e senso de reção.
Vai custar relacionamentos e amigos.
Vai custar gostarem de você e o entenderem.
Não importa.
As pessoas que foram feitas para você vão encontrá-lo do outro lado”.
#2 - Puxadinho do Luri
E o texto que mexeu comigo - e foi tema de terapia essa semana - foi o do Puxadinho do Luri. Fiquei com a sensação de que ele teve a capacidade de colocar em palavra tudo o que tenho sentido nos últimos tempos e jamais consegui escrever sobre.
"Tem algo muito poderoso quando a gente está apenas articulando o que vem do fundo, independente de ter ou não um lugar no mundo, de servir ou não pra alguma coisa"
Em Desperdicei minha criatividade com os sonhos dos outros, Luri fala sobre como tornou a escrita, algo que fazia pra se conectar consigo, em trabalho e, aos poucos, se viu perdendo a conexão com algo tão íntimo. Leitura daquelas que aquece o coração, faz a gente refletir e, sobretudo, faz a gente levantar com ânimo de dizer: “A partir de agora, eu vou criar pra mim”.
“Ao cortar a linha de chegada dos 30 anos, eu me sentia privado de algo que eu poderia ter vivido. Eu me sentia qualquer coisa, menos vitorioso. Parecia que até ali, eu tinha perdido tempo, consumido minha juventude alimentando o sonho de outras pessoas, ao ponto de ficar sem energia para cuidar dos meus”.
Recomendo muito.