#05 - O poder dos quinze segundos
Este texto contém muito spoilers sobre ‘É assim que acaba’, de Colleen Hoover. Se você não leu o livro, não viu o filme e odeia spoilers, melhor ler aqui depois.
Repetindo: este texto contém spoilers.
Antes de começar, por favor, dê play aqui em uma das músicas que acompanha esta edição:
“Quinze segundos. Esse é o tempo necessário para mudar completamente tudo o que você conhece sobre uma pessoa. Quinze segundos”
Colleen Hoover, É assim que acaba
Recentemente eu me rendi ao fenômeno Colleen Hoover e seu ‘É assim que acaba’. Levei alguns bons dias pra conseguir ler o livro e absorver a história de Lily, Atlas e Ryle. Na verdade, levei uns bons dias para absorver Lily e a estranha sensação de reconhecê-la.
Me perdoem os que amaram o texto de Colleen. Não sou essa pessoa. Já li construções textuais muito mais robustas e poéticas. Mas Colleen não precisa disso. Ela tem o dom da narrativa, da construção dos personagens e das nuances. A cada passagem de página eu sorria, chorava, implorava para que Lily não fizesse o que estava desenhado que faria. Ela é envolvente.
Terminei o livro dentro do avião voltando de uma viagem. Me lembro de fechar, olhar pela janela e sentir a lágrima escorrer pelo rosto. Não consegui começar a ler ‘É assim que começa’ logo na sequência, embora esteja na minha mesa de cabeceira. Resolvi esperar o filme do primeiro livro. E, nesse fim de semana, estava eu lá assistindo Lily, Ryle e Atlas ganharem vida diante dos meus olhos. E foi muito mais duro do que pensei.
Se você não leu o livro ou viu o filme, farei uma breve explicação:
Lily Bloom é uma jovem que luta para equilibrar a vida profissional e pessoal após a morte de seu pai, por quem tem sentimentos mistos. Ela encontra um certo consolo em Ryle Kincaid, um charmoso e arrogante neurocirurgião e logo se vê apaixonada por ele. No entanto, à medida que o relacionamento avança, Lily começa a perceber que Ryle não é tudo o que parecia ser.
Enquanto isso, ela também reflete sobre seu passado e sobre seu primeiro amor, Atlas Corrigan. Atlas reaparece em sua vida (e o cinema vai à loucura!), e Lily se vê dividida entre os sentimentos que ainda nutre por ele e os desafios de sua nova relação com Ryle (você vai se dividir entre Atlas e Ryle também, já adianto - pelo menos até uma parte, eu espero).
O que pode te parecer mais uma comédia romântica hollywoodiana traz, na minha humilde opinião, uma visão muito gráfica, dolorosa e poética sobre o que entendemos por amor.
Porque Lily se apaixona por um homem altamente sedutor, carinhoso, doce, sensível, inteligente, com uma confiança arrebatadora e uma sutil arrogância peculiar, mas que carrega consigo um ciúme doentio, um tenebroso medo de ficar sozinho e uma necessidade de controle sobre ela que, aos poucos, escala até a agressão física. Ela verdadeiramente ama Ryle, mas sabe que ele a faz mal. Ainda assim, não consegue deixá-lo, por amor. Por acreditar no lado bom e em todas as memórias que criaram juntos.
O filme explora pouco - e a tirar por algumas críticas, pode deixar o(a) espectador(a) confuso(a) em alguns momentos sobre a rapidez da escalada da violência. E é óbvio que poucas horas de filme não dão conta das 300 páginas profundas e repletas de detalhes dos personagens e da história.
Mas, pra quem já viveu violência em qualquer relação na vida, não é esse o padrão? São mesmo quinze segundos em que tudo muda.
É o corpo que, de repente, treme ao perceber a encarada do outro em alguma situação. Você tem necessidade de se explicar o tempo inteiro, se torna impossível ter dúvidas sobre seus sentimentos, pensamentos. Afinal, é o objeto que se quebra num momento de raiva, é o xingamento que vem, é a porta que bate, o afastamento dos amigos, a sensação de inadequação. É o aperto no braço como sinônimo de ‘eu preciso de você’, a relação forçada ao som de ‘eu te amo’. É a mão que vai no rosto quando o outro é contrariado. É a palavra dura, o empurrão da escada, o tratamento de silêncio porque você pensou em algo que “não deveria”, esteve onde “não deveria”, reagiu como “não deveria”, não fez “o que deveria”. É o controle mascarado de bem querer e proteção. É a necessidade que a vítima sente em dizer que foi um acidente ou justificar o comportamento do outro. É a vergonha que ela carrega e o silêncio que assume. São as dúvidas que rondam a cabeça. É o vaivém entre o te descartar como se você nada fosse e o tentar te reter como se nunca tivesse ido embora. Sempre seguido de um “desculpa, eu perdi a cabeça”, “não foi nada, certo?”, “você tem razão. Não vai acontecer de novo. Eu prometo”.
Promessas são mentiras doces e, ao longo do livro e do filme, você começa a olhar para Lily e pensar: por que a gente age como se não soubesse quando sabe, exatamente, o que vem na sequência?
“Impedir o coração de perdoar uma pessoa que você ama é, na verdade, muito mais difícil que perdoá-la”, diz Colleen no livro.
E é. Putz, é muito. Porque, assim como Lily, a gente tende a acreditar que a outra pessoa envolvida na relação (seja ela do tipo que for) é mais do que mostra naquele(s) momento(s). A gente tem boas memórias, certo?
Foi curioso ver que as cenas de violência doméstica acontecem rapidamente e, mais pra frente do filme, elas são mostradas de novo. Mas, dessa vez, exatamente como aconteceram. Embora tenha visto muita gente questionando isso na internet, me pareceu um recurso genial do filme. Porque, ao meu ver, é um ajuste da lente de Lily: ela quis acreditar que cada agressão foi, na real, acidental, fruto do descontrole momentâneo, da incapacidade de Ryle em lidar com os próprios sentimentos, mesmo que a intuição dela lhe dissesse, o tempo inteiro, que algo não estava certo naquela relação.
Quantas vezes a gente nega nossa intuição sobre alguém pra, depois, perceber que apenas negou saber o que já sabia? Isso chama amor?
Lily tem apoio em Atlas, que é apresentado como um amor saudável o tempo inteiro, mesmo que completamente imperfeito também (importante dizer aqui, hein: Brandon Sklenar é de emocionar de tão maravilhoso. Jesus do céu amado). Lily sente isso. Mas ela reluta. Afinal, Ryle é arrebatador e, digo mais, ela não pode mais afirmar que realmente conhece Atlas. O último contato entre os dois havia sido na adolescência, quando esse amor nasceu.
Em uma das cenas, a confusão de Lily fica bem clara. Ryle questiona se ela ama Atlas e, com receio, ela responde não saber. E que é aquilo, né, a gente nunca encontra a mesma pessoa duas vezes, nem na mesma pessoa. Mas as memórias…elas tendem a fazer com que a gente ache que tem certeza de tudo.
No panorama geral, a história me fez pensar sobre o que é amor e sobre como forjamos seu significado ao longo do tempo. É preciso mesmo ter que doer pra chamar de amor?
Na fila do banheiro pós cinema, duas adolescentes conversavam sobre o filme. Uma delas disse pra outra: “acho que a Lily ama o Ryle, sim. Porque, quando a pessoa te faz mal e você continua perdoando e vendo o que há de bom nela, precisa ter muito amor”.
Eu sorri na hora e não consegui me conter em dividir o que fiquei pensando desde que li o livro. Virei para trás e perguntei pra ela: “E quando você nega amor, proteção e cuidado a si mesma em detrimento do amor ao outro…ainda é amor?”. Elas levantaram a sobrancelha e fizeram um “é, tem isso”.
Eu sei - e você sabe - que a resposta é ‘não’. Mas, às vezes, a gente tende a achar que ela tá errada. Porque, socialmente, fomos ensinados assim. “O amor tudo crê, tudo suporta”. É onde os padrões se iniciam - e reiniciam.
Lily viveu em uma família repleta de violência doméstica. Cresceu questionando o amor de quem fica “apesar de”. Condenou mil vezes a mãe que permaneceu com o marido agressor até o último dia dele. Soube manter distância do pai, mesmo com sentimentos confusos sobre ele. Mas, com Ryle, não. Com Ryle ela insistiu. Demorou a questionar. E se deu conta que havia se tornado aquela que acredita que só é digna(o) de amor quem luta por ele, quem tenta, a todo custo, salvar o outro das próprias sombras. Descobriu que condenar a posição alheia é muito mais fácil quando se está fora do contexto sentimental, da dependência. Lily demorou a se dar conta de que era das sombras dela que Ryle se alimentava.
Aos poucos acho que a gente entende que a história nunca foi sobre a dúvida entre Ryle ou Atlas, mas sobre Lily e suas crenças sobre si e o amor que achava que merecia.
Ryle pode não ser uma pessoa ruim (o que nos define como bons e maus, não é mesmo?). Mas ele tinha atitudes ruins - e, o pior, tinha consciência disso. Só escolhia não cuidar. Enfrentar a própria sombra e mudar os próprios padrões é difícil. É desafiador. Precisa de coragem, de bom senso, de ouvidos atentos, de disposição. E nem todo mundo tem.
Mas de onde vem a ideia de que devemos ser salvadoras(es) de quem amamos?
“O amor pode ser um lugar maravilhoso para se esconder, mas também pode ser um lugar perigoso onde se perde”, diz o livro.
Quantas vezes já nos perdemos em nome do amor na vida? Por familiares, amigos, amores, ideias e ideais.
E quando vamos aprender que, talvez, “pra sempre” seja sobre memórias e não sobre pessoas?
Lily já frequentou minhas sessões de terapia. Porque todo processo de cura na quebra de padrões - seja qual for - é muito doido e doído. Ele é construído em altos e baixos. Você se cura aos poucos, retomando situações em perspectivas diferentes, sentindo novamente as dores, falhando mais uma vez, indo e voltando. Mas, como também diz o livro, é importante sempre lembrar:
“Nós destruímos o padrão antes que o padrão nos destrua”.
E isso é uma escolha diária.
Perdão pelo tanto de spoiler trazido aqui. Mas o livro é um fenômeno do TikTok e, se você ainda não leu, com certeza sofrerá o impacto dos spoilers nas redes sociais.
Lily quebra o padrão. Interrompe o ciclo ao fazer Ryle responder pelos próprios atos diante da recém-nascida filha dos dois. Na cena que me fez chorar litros e soluçar no cinema e no livro, Lily e Ryle estão com a filha dos dois no colo. Depois de um gesto lindo dela com ele, Lily pede o divórcio. A sequência do diálogo é imbatível.
“Preciso que você me diga o que você diria para nossa filha se o homem que a amasse de todo o coração a machucasse”, questiona Lily.
“Eu imploraria para que ela o largasse. Eu diria que ela merece muito mais que isso. […] E imploraria que ela não voltasse pra ele, por mais que o amasse. Ela merece muito mais”, diz Ryle.
Quebrar um padrão ruim importa. É a escolha que redefine presente e futuro. E não falo só do outro. Falo dos nossos padrões ruins também. Pode pensar aí nos seus. A gente sempre tem, nem que seja por espelhamento. Enxergar a própria sombra - e se responsabilizar por ela - dói profundamente. Mas ignorá-la tem um preço muito mais alto. E, chame do que quiser, mas fingir não ver não é amor. Negar o que a intuição mostra não é amor. Nem por outro e nem próprio.
Amar é, sim, acolher, dar abrigo pro iluminado e sombrio que comportamos e que o outro também comporta. Mas é importante lembrar: você não salva sozinho(a) quem ama. No máximo, você suporta. Mais que isso é só você esquecendo de amar a única pessoa que jamais vai te abandonar: você mesma(o). Amor pode até demandar certas “concessões” e “sacrifícios”. Mas nenhuma delas passa pelo nosso bem-estar físico, mental e emocional.
E é assim que você se salva.
É assim que acaba. E, incrivelmente, é assim que começa uma nova história.
Ps.: mesmo com os spoilers, leia o livro, veja o filme. Não necessariamente nessa ordem. Recomendo.
Sobre estar no próprio elemento
Você sabe qual o seu elemento? Eu descobri que o meu é a felicidade. Eu tenho estado muito diferente desde que entendi que, vibrar no próprio elemento é, sim, uma escolha de se colocar nos lugares em que você quer estar, realizando as coisas que deseja realizar. E não falo de coisas gigantes, tá? Digo das pequenas. Um curso, o tempo pra leitura de um livro que tá há tempos na estante, o horário inegociável pra si, o início de um projeto novo, uma atenção para algo que importa, de verdade, pra você.
Qual foi a última vez que você esteve no seu elemento? E por que não se coloca lá de novo?
Resolvi me lançar no desafio de montar minha rotina ideal, com coisas que são importantes pra mim - mesmo que inclua também atividades que preferia evitar. Recomendo. A segunda já começou diferente por aqui.
Sobre construção de repertório
É criativo o ser que constrói repertório. E constrói repertório quem tem busca referências e sai da bolha. Poucas pessoas entendem - e fazem isso - tão perfeitamente quanto Tatiana Guedes em sua news ‘Zero pretensões e sentimentos aleatórios’. E, não é porque é minha amiga, mas ela é minha guru de coisas incríveis pra ler, pra ver, pra ouvir, pra discutir. E ela lançou, nesta semana, uma versão paga da newsletter dela abrindo todas as referências que alimentam esta mente brilhante que ela tem. Eu tô lá e te digo: se fosse você, iria também.
A gente se encontra na próxima edição!
Boa semana por aí!
é bom abrir um tempo na agenda para si mesmo. a gente já dedica tanto aos outros...
quem não consegue dedicar uma quantidade de tempo para si, acaba gastando uma enorme quantidade de tempo tentando combater os sintomas da ausência de tempo para si.
que bom que você tá conseguindo criar seus rituais por aí.
de fato, muda a vida! :)