#06 - O espírito de Valquíria
Sobre a experiência mais linda de todos os tempos: ver, ao vivo, Fernanda Montenegro, a luz do luar, ler Simone de Beauvoir.
Um arrepio seguido de um sorriso largo e da lágrima que escorreu pelo rosto. Foi assim que eu me senti ao ver Fernanda Montenegro despontar no abrir das cortinas no Ibirapuera, em São Paulo, no arrebatador espetáculo ‘Fernanda Montenegro lê Simone de Beauvoir’. Uma das minhas autoras preferidas com uma de minhas atrizes preferidas é um prato cheio para emoção de um fim de domingo.
A peça, baseada na brilhante obra ‘Cerimônia do Adeus’ e em outros trechos de obras de Beauvoir como ‘O Segundo Sexo’, é de simplicidade e profundidade inacreditáveis. Uma mesa, uma cadeira, papéis, um copo d’água e Fernanda Montenegro, que começa colocando os óculos para a leitura das mais de 40 páginas que constituem o espetáculo.
A atriz traz o relato de Simone como uma carta lida a amigos. A leitura é acompanhada por uma reflexão sobre as ideias de Beauvoir e como elas se relacionam com a atualidade. Da infância ao fim da vida de seu grande parceiro, Jean-Paul Sartre, a obra traz o relato da descoberta da primeira amizade, o luto, o primeiro amor, a primeira paixão, a descoberta da sexualidade, os questionamentos sobre a forma de se relacionar, sobre o que é ser mulher naquela sociedade (e, curiosamente, não poderiam ser mais atuais), sobre o autoconhecimento e a delicada relação com o envelhecer e o morrer.
Ao longo da peça, o público é convidado a refletir sobre questões fundamentais da existência e da identidade, oferecendo uma experiência sobrenatural (aos mais atentos) que une teatro, literatura e filosofia. Entre os inúmeros trechos impactantes, me chamou a atenção quando Fernanda lê o trecho em que diz que os pais de Simone lhe ofereceram o mais barato dos entretenimentos na vida: a leitura.
Foi através da leitura que conheci Simone. Foi por seu texto cru, livre de julgamentos e tão exposto, que entendi como gosto de me expressar também. Beauvoir me ensinou a ser livre nas palavras que coloco no papel. E ouvir Fernanda interpretá-la foi como ouvi-la pessoalmente. Como ouvir parte de minha inspiração na vida diante dos olhos.
A literatura me salvou inúmeras vezes, inclusive de mim mesma. É com ela que eu descanso, estudo, aprendo, converso, crio, questiono, mudo. É com ela que eu descubro novos mundos, amplio repertório, tomo decisões. A literatura me apresentou a escrita. A escrita reforça meu amor pela literatura. Curioso pensar que um(a) livreiro(a) contém em seu nome a palavra “livre”. E digo curioso porque literatura, pra mim, é, sim, liberdade. Um livro não te impede de nada. Ele contém histórias que serão vividas de forma única por cada leitor. Cada obra é indefinida por si mesma e recriada a partir dos olhos dos outros - e não somos todos assim? Obras redefinidas por cada nova interação que temos?
Em determinado momento, o texto provoca:
“Cada escolha envolve o eu de hoje e o eu de amanhã. E qual será o eu de amanhã?”.
Quem sou hoje define o que quem serei amanhã irá querer e viver. E esse eu pode alterar tudo de novo. E de novo. (Releia, se necessário. Tudo bem, não é trivial)
“Não se nasce mulher. Torna-se mulher”.
“Toda revolução é uma fase da própria história”.
É, Simone sabia o que dizia. Viveu na pele cada fala.
Disse que não há caminho preestabelecido para ninguém e que criamos cada um o seu. Mas ressaltou que aquele que não é capaz de se encontrar no meio da multidão é o mais solitário dos indivíduos.
Foi Simone quem me ensinou, durante um luto, que “a morte não é a maior perda da vida. A maior perda é o que morre dentro de nós enquanto vivemos”. Foi Simone quem me ensinou que ser mulher é bancar a si mesma, mesmo que desagrade os demais. Nada, nem ninguém, vale o seu olhar no espelho com orgulho de si.
Simone foi quem me ensinou que cada momento, cada pessoa, cada interação…tudo gera uma memória. Mas que seu passado constrói quem você é no presente e é o seu presente que define quem você será no futuro. E que isso é ser livre. Afinal, “a liberdade é o que você faz com o que foi feito com você” (é, não dá para terceirizar a responsabilidade por quem se é, meu anjo. Isso é escolha. E só sua).
Deitada no gramado do Ibirapuera, chorei quando, interpretando Simone, Fernanda fala sobre a chegada da velhice e as limitações que ela provoca em todos os corpos que até lá chegam. Ela é prova disso e me fez lembrar dos meus pais.
Narrando o fim de Sartre, Simone ressalta que amor é presença. É escolha - e não, necessariamente, como casal. Amar é mais que manter um relacionamento. É, inclusive, saber o momento de sair de um. Amar é parceria. É colo, é amizade. É saber guardar pra si algo que vai gerar dor no outro, mesmo que doa muito em você.
“Uma pergunta ficou: deveria dizer a Sartre que a morte estava chegando para ele? Não. Isso o deixaria angustiado”, disse.
Preferiu deixá-lo dormir e ir. No fim, o abraçou e dormiu ao seu lado. Não eram amantes perfeitos. Eram amantes sabidamente imperfeitos e, por isso, tão congruentes.
Rígida no seu desejo de não desmoronar e dona de um espírito de Valquíria (forte, determinada e guerreira) como afirmou Sartre, Simone guardou as lágrimas e permitiu que saíssem de si como textos. Sobre si, sobre amor, sobre liberdade. Eternizou pensamentos e, assim como me provoca há tantos anos, provocou e fez chorar muitas outras pessoas naquele gramado, pela interpretação de Fernanda Montenegro.
Não podia ser melhor. Duas mulheres tocando profundamente tantas pessoas. Duas mulheres livres. No mais íntimo da palavra. Dois espíritos de Valquíria que desafiaram - e desafiam - o destino e o poder. No auge de seus 94 anos, com uma mente lúcida, um olhar brilhante e um corpo que apresenta os sinais da idade, Fernanda demonstra o que Simone sempre lhe ensinou: “O tempo que não é vivido é o tempo que se perde”.
Dona Fernanda me fez relembrar tudo o que aprendi e aprendo com Simone de Beauvoir. A liberdade tem gosto de vida. E, não, ela não é sinônimo de desordem. Mas ela demanda a coragem de lidar com escolhas. Fáceis e difíceis. Ela demanda saber ficar e saber ir. Demanda escolher com quem sou hoje por quem serei amanhã. Sabendo que tudo pode mudar a cada nova eu (ou a cada novo(a) você).
“No princípio, o homem é nada. E será nada até o que ele fizer de si mesmo”
Simone de Beauvoir
Agradeci. Sorri. Chorei. Aplaudi de pé.
E recomendo: leia Beauvoir. Veja Fernanda. Liberte-se. Nada paga.
Eu achei que nunca mais ia me surpreender com seu talento pra escrita, mas eu me surpreendo toda vez. Sou fã de Simone, Fernanda e Gabriela!
com esses dois talentos reunidos, não teria como não ser maravilhoso!